NOTÍCIAS » A CAIXA-PRETA DO DPVAT

O número de ações na Justiça para receber o seguro obrigatório, que rende mais de R$ 5 bi anuais às empresas, superou, no ano passado, o volume de indenizações pagas

Começou na semana passada - e vai até março - a pingar os pagamentos dos boletos do DPVAT no caixa da Seguradora Líder, um pool de 66 seguradoras que administra o contrato. Criado para socorrer as vítimas de acidentes de trânsito, o seguro obrigatório custa caro (varia de R$ 93,87 para carro de passeio e R$ 259 para moto) e não salva quase ninguém. Em 2009, apenas um terço dos R$ 5,4 bilhões arrecadados serviu para indenizar a quem foi atropelado, está inválido ou para amenizar a dor das famílias que perderam pessoas queridas. Poderia ter sido maior, se os acidentados não precisassem sofrer ainda mais para receber os seus direitos.

A insatisfação dos usuários é tanta que, pela primeira vez desde que foi criada a tal apólice, em 1974, o número de ações exigindo o ressarcimento dos valores na Justiça ultrapassou o próprio número de indenizações efetivamente pagas aos acidentados. Em 2008, foram cerca de 200 mil processos contra o DPVAT nos tribunais, diante de 146,5 mil indenizações pagas no mesmo ano (57,1 mil por morte e 89,4 mil por invalidez). Um deles é o da dona de casa de Betim, Sueli da Silva Ribeiro, de 48 anos, que levou o maior golpe que uma mãe pode ter na vida. Em 2004, perdeu o filho Caio, aos 10 anos de idade, atropelado na porta da escola pelo próprio ônibus escolar. Ele estaria a ponto de completar 15 anos quando ela recebeu a indenização por morte, depois de cinco anos de espera na Justiça.

"Só aceito prestar este depoimento para alertar outras pessoas a buscarem o seu direito. Sei que o meu filho gostaria que eu fizesse assim. Ele era um menino bom, que gostava de ajudar as pessoas", explica a mãe, que preservou os brinquedos e as roupas de que Caio mais gostava. O filho Diogo, de 12 anos, também tinha o irmão mais velho como exemplo. "Nós é que sabemos que não há nada rápido no processo, como informa o bonequinho que sai da placa de trânsito naquela propaganda do DPVAT. Já ouvi despachante virar para mim e dizer assim: Acabou, você não está entendendo? Você não tem direito a nada." No ano passado, a família retirou em torno de R$ 18 mil, valor corrigido em relação à indenização padrão por morte, de R$ 13,5 mil.

Outra tormenta do seguro DPVAT é enfrentada por quem tem direito à indenização por invalidez. O entendimento entre perda total e parcial pode reduzir o valor do seguro a menos de 10%, uma perda grande para quem vive com o orçamento nos limites do salário mínimo. A MP 451, editada em 2009, definiu o preço que vale cada parte do corpo humano. Assim, a perda de um olho, por exemplo, indeniza a vítima em R$ 4 mil. Já um dedo do pé pode custar de R$ 405 a R$ 1,35 mil. Se for o dedo mínimo da mão, o DPVAT paga uma indenização de apenas R$ 1, 6 mil. E assim por diante.

Como o impacto do acidente na vida produtiva da vítima não é observado pela estranha tabela, a discussão sobre o valor das indenizações continua sendo levada à Justiça. A queda de braço nos tribunais contraria o objetivo da nova lei, que é exatamente enxugar essas demandas que, de 2006 a 2008, quadruplicaram, saltando de 50 mil para 200 mil ações. Como na Justiça os valores podem crescer, atingindo o teto de R$ 13,5 mil, segurados classificados com uma invalidez parcial pelo sistema continuam tentando provar nos tribunais que o dano foi bem mais amplo.

ESPERANÇA Esse é o caso do aposentado José Ramos. Depois de sofrer um acidente de trânsito, ele ficou impossibilitado de andar sem a ajuda de uma prótese, que coordena os movimentos da perna direita, além de levar uma bengala que lhe permite dar pequenos passos. José Ramos teve também como sequela do acidente uma insuficiência cardiorrespiratória que o impede de realizar pequenos esforços. Falar ao telefone lhe causa um cansaço maior que a sua saúde pode sustentar. Do DPVAT ,ele recebeu o valor de R$ 7 mil, que corresponde ao pagamento por uma invalidez parcial. Orientada por um médico perito que se surpreendeu com a avaliação do seguro obrigatório, a família procurou a Justiça. "Temos a esperança de receber o complemento desse valor, o que nos ajudaria muito", comenta a mulher do aposentado, Lúcia Leite.

Apesar de fixar valores, a lei diz que a indenização por invalidez parcial pode render a vítima até R$ 13,5 mil. "Isso é o que dá margem aos questionamentos", explica o juiz da primeira Vara Cível do Fórum de Belo Horizonte, Ronaldo Claret de Morais. O magistrado esclarece que a tabela publicada pela MP não colocou por completo fim à discussão. Ele cita o exemplo da visão humana. Pela tabela, um olho vale 30% do valor do seguro, mas a Justiça, em alguns casos, pode entender que tanto a indenização tabelada quanto a indenização total, não são suficientes para arcar com tal prejuízo, e decidir pelo pagamento integral. Segundo o magistrado, uma súmula do STJ poderia pacificar a questão.

DRAMA DAS VÍTIMAS

O reembolso de despesas médico-hospitalares pelo DPVAT pode ser reivindicado até o valor de R$ 2,7 mil. Em tese, pagaria por despesas com remédios, hospital e sessões de fisioterapia das vítimas de acidentes de trânsito, desde que comprovadas com recibos e receitas médicas. Na prática, porém, a doméstica Arlinda Aparecida Euflasino, de 37 anos, não consegue ajuda do seguro obrigatório nem para custear a caixa de comprimidos para dor, de Novalgina, a R$ 6,50. Quebrou a bacia e fraturou dois ossos da coluna ao ser atingida por um carro da Copasa quando atravessava o sinal na Avenida Nossa Senhora do Carmo, na Região Sul de Belo Horizonte. Estava correndo para ir ao trabalho e conseguir sair a tempo de assistir à formatura do filho de 9 anos, Caio.

Apesar de estar entrevada na cama, sem poder andar, desde o dia 18, não tem despesas a comprovar. Foi atendida pelo Sistema Único de Saúde (SUS) e, no dia seguinte, recebeu alta do Hospital de Pronto-Socorro João XXIII. Não está fazendo fisioterapia, porque o posto de saúde mais próximo de casa, no Bairro Itaipu, está de recesso em janeiro. "Disseram-me que eu tenho direito a receber alguma coisa, mas não estou entendendo nada e nem posso sair dessa cama. Pedi ao meu patrão para olhar", lamenta. A doméstica paga R$ 60 à sobrinha de 11 anos para ajudá-la com os filhos pequenos e fica fazendo movimentos na cama sozinha. "Não posso ficar sem trabalhar", explica.

"Parece que esta indenização só sai para quem morre ou fica inválido. Procurei saber a respeito e eles recomendam que a pessoa vá gastando por conta própria e ao fim do tratamento, vá lá tentar receber. Que garantia eles dão?", protesta o patrão Marco Souto, que desistiu do DPVAT e preferiu tentar obter ajuda por meio do INSS, além de pagar integralmente o salário do mês e o 13º.

"As despesas de assistência médica podem ser retiradas a qualquer momento e creditadas na conta do paciente, desde que apresente os comprovantes. Pode tirar um pouco hoje e o restante no final do tratamento. É só consultar a seguradora mais próxima da sua casa", garante Ricardo Xavier, presidente da Seguradora Líder. Segundo ele, no ano passado 85,3 mil pessoas descontaram a fatura do hospital no cofre do DPVAT. "Pagamos mais de 90% das indenizações em até 30 dias e o restante em 60 dias. A média é de 1,1 mil indenizações liberadas diariamente", afirma.

Xavier reconhece que o percentual de 33% do valor orientado para o pagamento de indenizações poderia ser ampliado. Segundo ele, entretanto, o índice chegaria a 44% incluindo despesas com regulação de sinistro, custos administrativos e constituição de reserva técnica (para pagamento de indenizações posteriores dentro do prazo de três anos de prescrição). Do total arrecadado, 45% são destinados ao Fundo Nacional de Saúde (FNS), do Ministério da Saúde, e 5% ao Departamento Nacional de Trânsito (DENATRAN), para a realização de campanhas voltadas para prevenção de acidentes. Com as seguradoras, ficariam 2% sobre a margem de lucro.

11 jan 2010 - ESTADO DE MINASVoltar