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Mineiros buscam CNHs ilegais em São Paulo
Documentos são legítimos, mas obtidos de forma fraudulenta, principalmente em cidades do interior paulista, algumas delas com mais motoristas que habitantes

Pedro Ferreira – Estado de Minas

Um derrame de carteiras nacionais de habilitação (CNHs) ilegais deixa a Polícia Civil mineira em alerta. Os documentos são legítimos, expedidos pelos Detrans, mas obtidos de forma fraudulenta, principalmente em São Paulo. O esquema envolve agenciadores que prometem facilidades, já que o interessado não se submete aos exames exigidos pela lei. O preço varia de R$ 1,6 mil a R$ 2,2 mil, dependendo da categoria.

De acordo com o Conselho Fiscal do Sindicato dos Proprietários de Centros Formação de Condutores de Minas Gerais (Siprocfc-MG), 70 mil Permissões Para Dirigir (PPDs) – válidas por um ano, até a entrega da carteira—foram emitidas de forma fraudulenta, nos últimos 30 meses, pelas Circunscrições Regionais de Trânsito (Ciretrans) de cidades paulistas como Ferraz Vasconcelos, Mogi das Cruzes, Diadema e Jandira. Desse total, pelo menos 25 mil foram transferidas para Minas Gerais. “Há cidades em São Paulo com mais motoristas habilitados do que o próprio número de habitantes. Cidades com 5 mil moradores e 15 mil carteiras expedidas”, denuncia o presidente do Siprocfc-MG, Rodrigo Fabiano da Silva.

Auditoria feita pelo Detran paulista, segundo ele, detectou 220 PPDs com a mesma impressão digital. “Uma única pessoa confirmou a presença dos candidatos nos cursos teóricos e práticos”, disse. Rodrigo Fabiano conta que impressões digitais de delegados, funcionários das Ciretrans, diretores gerais e de instrutores de Centros de Formação de Condutores (CFCs) serão comparadas em todo os municípios onde as fraudes foram descobertas.

O presidente do Siprocfc-MG afirma que as quadrilhas também adulteram o interstício – o prazo estipulado entre um exame e outro. “Por isso, os mineiros vão a São Paulo e voltam com a carteira no mesmo dia, com duas habilitações, nas categorias A e B, para dirigir carros e motos”, garante. A viagem dos candidatos, em ônibus fretados, já é conhecida como Expresso Mineirinho e é responsável por uma queda de 60% no movimento dos CFCs do Sul de Minas, nos últimos três anos.

Somente em Belo Horizonte, o Detran-MG apreende pelo menos duas CNHs ilegais por dia, desde que intensificou as operações em julho do ano passado. Só no último semestre, 242 agenciadores e condutores foram indiciados pela Polícia Civil . Na capital, os cofres públicos e os CFCs deixaram de arrecadar cerca de R$ 1 milhão nos últimos 12 meses.

Em Minas, são 3,9 milhões de motoristas legalmente habilitados – no ano passado foram emitidas ou renovadas 1,1 milhão de carteiras –, mas não há um levantamento de quantas CNHs ilegais são apreendidas ou continuam em circulação. Mas as investidas policiais em algumas cidades do interior do estado mostram a dimensão do crime. Em Abre Campo, município de 12 mil habitantes a 216 quilômetros da capital, na Zona da Mata, 100 moradores compraram CNHs nos últimos seis meses em Ferraz Vasconcelos (SP). O delegado Carlos Roberto Souza da Silva, responsável por outros cinco municípios vizinhos que totalizam 76 mil habitantes, identificou 300 CNHs compradas por intermédio de donos de auto-escolas de Ferraz Vasconcelos e de outras cidades paulistas, e 80 documentos ilegais já foram tirados dos candidatos a motoristas.


Em Divinópolis, a 120 quilômetros de BH, no Centro-Oeste de Minas, mais de 20 carteiras compradas no interior paulista foram apreendidas numa única operação, em abril, com a prisão de dois instrutores de auto-escola e um comerciante. “A operação teve continuidade em São Paulo e identificou funcionários do Detran daquele estado. Para evitar o golpe, eles mudaram o critério de comprovação de residência, passando a exigir o título de eleitor dos candidatos”, conta o delegado Fernando Vilaça. As carteiras eram vendidas a R$ 2 mil. Conforme apurado pela polícia, o comerciante preso levava os documentos dos candidatos a Mogi das Cruzes (SP), onde as CNHs eram feitas em espelhos verdadeiros e prontuários cadastrados no sistema, sem que nenhum candidato fosse a São Paulo para os exames psicológicos, psicotécnicos, de saúde, testes de legislação e direção.

Acima de qualquer suspeita
Carteiras ilegais usam papel original e os motoristas têm prontuários nos bancos de dados dos órgãos de trânsito, o que dificulta a fiscalização durante as blitzes

Pedro Ferreira – Estado de Minas

As carteiras emitidas pelas quadrilhas de outros estados não levantam suspeita numa fiscalização de trânsito, pois o papel é original, saído de dentro dos Detrans. Os motoristas também têm prontuários cadastrados nos bancos de dados dos órgãos de trânsito, inclusive com data da primeira habilitação e outros registros. “As carteiras totalmente falsificadas são de Minas Gerais. Aquelas ideologicamente falsas, expedidas pelos Detrans, mas sem as formalidades legais, são de outros estados”, afirma o coordenador de Operações Policiais (COP), delegado Márcio Lobato.

As falsificações só são descobertas quando os dados do documento são analisados detalhadamente. Em Abre Campo, por exemplo, muitos candidatos “comprovaram” o endereço residencial em Ferraz Vasconcelos, sem nunca terem ido àquela cidade paulista, pois geralmente as carteiras são compradas num município e emitidas em outro. Também chama a atenção da polícia o volume excessivo de carteiras expedidas por um único órgão de trânsito para uma determinada cidade. Ao contrário das CNHs fraudadas na Bahia, onde são adulterados prontuários de pessoas falecidas para gerar um registro falso, nas de São Paulo é possível encontrar a pasta e o prontuário do condutor, devidamente cadastrado no sistema.

Para o delegado Márcio Lobato, do Detran de Minas, as apreensões aumentaram no último ano porque a repressão policial tem sido maior. “Com a integração das polícias, a PM passou a ter acesso aos dados do Detran do próprio local da abordagem, para consulta de prontuários. O simples exame do papel, como era feito antes, não é mais suficiente para detectar a ilegalidade de um documento. O papel-moeda é autêntico, mas os dados falsos”, explica.

Conexão

No ano passado, segundo o coordenador do COP, duas quadrilhas foram desbaratadas em Belo Horizonte e 50 pessoas respondem processo por uso de documento falso. Cada acusado pode pegar de dois a seis anos de reclusão, que é a mesma pena para quem frauda as carteiras. “As quadrilhas tinham conexão em João Monlevade, Rio Casca, São Gonçalo do Rio Abaixo, Abre Campo e Barão de Cocais”, afirma o delegado. Uma das quadrilhas tinha participação de dois policiais militares e três civis. Em função dessas prisões, a PM foi orientada a consultar todos os dados da carteira em uma central a que só a Polícia Civil tinha acesso.

Em dezembro do ano passado, na capital, 24 pessoas foram presas numa operação conjunta das polícias Civil e Militar, depois de seis meses de investigações. Os documentos eram vendidos a R$ 1,5 mil. O chefe da quadrilha era Marco Aurélio da Silva, o “Coruja”, que tinha apoio de dois policiais civis e dois militares. Os civis eram responsáveis pelo levantamento de dados junto ao Detran. Eles entravam no banco de dados e obtinham informações importantes, como o número de série dos documentos. O chefe da quadrilha lavava as CNHs com produtos químicos e imprimia o nome dos novos motoristas. Os PMs envolvidos aliciavam interessados na compra das carteiras. O bando tinha escritório no Bairro Jaraguá, na Pampulha, e agia também em várias cidades do interior de Minas.

Carteira "quente" pode custar R$ 800 em BH

Pedro Ferreira – Estado de Minas

Em Belo Horizonte, com R$ 800 é possível conseguir uma carteira quente sem levantar suspeita. É o que garante uma publicitária de 35 anos, que pediu para não ser identificada. Ela assume que pagou para ser aprovada no exame de direção. Depois de reprovada três vezes , recebeu uma proposta tentadora do seu instrutor de auto-escola, que agenciava clientes para o dono de outro CFC, que é ex-funcionário e teria um esquema. “Instrutores de várias escolas agenciam clientes para esse dono de auto-escola. Acho que eles reprovam os candidatos por pequenas bobagens, só para forçá-los a pagar”, acredita.

No dia do exame de direção, a publicitária conta que o chefe da quadrilha chegou num carro da auto-escola, conversou com o instrutor dela e com os examinadores do Detran. Depois, ele se aproximou da candidata e deu um tapa de leve nas suas costas, como se fosse uma senha. “Entrei no carro com dois examinadores e fiz tudo direitinho. Por incrível que pareça, eu estava menos nervosa. Talvez porque já sabia que seria aprovada. Meu único medo era por estar praticando um ato ilícito”, confessa a publicitária.

Antes de aceitar a proposta do instrutor, ela já desconfiava do esquema, desde que uma dona-de-casa de 60 anos conseguiu ser aprovada “sem saber dirigir direito”. Segundo a publicitária, a dona-de-casa recebeu o documento mediante a promessa de que continuaria com as aulas de direção. “Ela demorou quatro meses para passar no exame de legislação. Tentou um ano e meio o exame de direção e não conseguiu. Fazia tudo errado, mas passou. Puxei a língua do meu instrutor e ele confessou”, completa. A publicitária afirma que, ao ser avaliada, a dona-de-casa foi a única que prestou o exame em uma rua paralela à avenida principal do Bairro Castelo, na Região Noroeste, onde os outros candidatos fazem o teste.

17 jul 2007 - Estado de MinasVoltar